terça-feira, 11 de setembro de 2012

Ai de ti, Largo da Batata!

 
Quero ficar ausente
            O que os olhos não veem
            O coração não sente
                                                Adoniran Barbosa

Não queria passar pela região do Largo dos Pinheiros, com medo de morrer de desgosto. Ouvi notícias, horrorizei-me com algumas fotos, reportagens. “Largo da Batata ficará para 2013”, dizia algum jornal, e me lembrei feliz de quando a previsão tinha sido dada para 2009, 2010, 2011... quem sabe nessas não duraria para sempre, o pobre, sujo e largado Largo da Batata? Sonhar é de graça.
Esse tal Largo, verdade seja dita, nunca nem sequer existiu. Existia na boca do povo, nas referências, na imaginação. Agora é que resolveram dar esse nome, cinicamente, como um batizado de defunto, o último estandarte, selando a lenta vitória que remonta aos anos 90, Paulo Maluf. Havia antes a Martim e a Baltazar Carrasco, a Belchior Coqueiro, a Miguel Isasa, enfim, uma série de ruas que formavam aquele conjuntinho admirável de casas e quebradas antigas, às vezes uma praça, uma vila, um beco. Isso até mesmo depois da Nova Faria Lima, que cruzou o bairro como uma trincheira ou uma locomotiva, dividindo-o e abrindo as chagas que, infeccionadas, hoje o mataram. Mas o que importa é que o Largo da Batata, se antes era real mas não existia, hoje em dia, talvez até exista, mas não é real.
Me lembro da última vista que fiz ao pobre: o quarteirão que ficava entre a Faria Lima e a Fernão Dias, separando o Largo dos Pinheiros do dito da Batata, ainda estava de pé, vazio e fantasma. Talvez uma lotérica, um boteco ainda funcionassem. Mas o belíssimo edifício de meados do século passado, que ficava justo na esquina da Martim Carrasco, já tinha sido desocupado, e mesmo parte do quarteirão já deixava ver o outro lado, num rombo grotesco, preconizando o fim de tudo aquilo.
Aliás, me lembro, ali ficava uma excelente tabacaria, comércio dos mais antigos do bairro, que terá sido feito dela? Triste pergunta.
Retardei esta visita enquanto pude, mas era fatal. Dei de passar lá de ônibus, claro, já que é caminho entre minha casa e a Universidade de São Paulo. Tentava não prestar muita atenção, ler, ouvir música, dormir, enfim, mas um dia na volta da aula me levantei mecanicamente, dei sinal e desci na rua Butantã, pouco antes do Largo dos Pinheiros, propriamente dito, diante da praça Septímio Severo.
De lá, realmente, a única coisa intacta é a igreja, e mesmo assim foi caiada de branco há coisa de três anos, ficou feíssima, a pobre, antes era tão agradável naquele cinza escuro... a torre ainda se ergue eterna, como uma bênção, um voto desesperado para aquela terra arrasada, moderna barbárie!, da avenida Faria Lima e de seu largo natimorto.
Não me abri para sentimentalismos, o que outrora faria sem falta, por medo do vexame e do ridículo de chorar um pedaço de terra tão nojento como aquele. Ia passando pelas ruas, a princípio subi a própria Butantã: lá, por hora, não há nada de novo. Até o meu barbeiro – graças a Deus! – segue firme e forte na mesma esquina com a rua São Miguel, ao menos era isso que se lia na placa com o desenho do pente e da tesoura, letras em diagonal. Mas também se leem muitas outras placas de “Vende-se”, anunciando o inevitável em eufemismos de câmbio. Do outro lado da rua uma fantasmagoria de há muito já deixava entrever esse mesmo risco, nas casas e galpões, mortos, que antecedem o posto de gasolina ao lado da igreja. Lá é certeza: subirá outro prédio.
E pensar que essa é uma das partes que foi menos afetada. Seguindo para cima o retrato é ainda mais absurdo. Quem se lembra hoje em dia de que havia uma esquina – e que esquina! – entre as ruas Teodoro Sampaio e Cardeal Arcoverde? Claro que na teoria, geometricamente, a esquina ainda existe, assim como o Largo da Batata também, só que não. Virou um descampado de cimento, como, aliás, quase tudo por lá. Onde não sobrou barraca ou instalações de obras eles plantaram uns pinheirinhos sem-vergonha, projeto a longo prazo!, como que pra rir da cara dos trouxas nós outros, mesmo. Aquela, que eu me lembre, era uma esquina bem formosa, com sobrados comerciais de dois andares, uma vida ativa, alguns bancos, lojas populares, enfim. Tudo isso já faz ano e meio foi posto abaixo, quando me ausentei já não existia, assim como aquele trechinho da Cardeal Arcoverde que dava na velha Cooperativa Agrícola de Cotia, cheio de cabeleireiros.
Mas a surpresa maior foi o outro lado do quarteirão, da Martim Carrasco, transformado tupiniquim e cinicamente em um boulevard, tão charmant quanto a avenida São João. Completamente arrasado! Em tese, outra vez em tese, não era surpresa nenhuma, era muito óbvio que aquilo aconteceria, mas nem por isso deixei de sentir certa tristeza por aquele vazio tão sentimental quanto geográfico. Ali outrora houve uma vida comercial das mais ativas e, por que não, até agradáveis. Bons botecos, cabeleireiros, fliperamas, ferragens, marcenarias, costureiras, relojoarias, tabacarias, açougues, sapateiros, lotéricas, enfim: todo o pouquinho que há de bom nessa triste sociedade brasileira dava lá, até o governo baixar, muito obrigado, sim senhor.
Isso porque não citei o tal do sítio arqueológico que acharam no meio das obras. Denúncia anônima! Fez-se um escândalo, pararam as obras, e depois, claro, jogaram um belo de um pano quente, com direito a uma ridícula exposição do Sesc Pinheiros justificando a completa demolição e continuação das obras do Largo. Passando de ônibus, se via muito bem a velha manjedoura, achado do sítio arqueológico, carcomida pelo capim e pelas barracas do canteiro de obras. Agora já deve estar como estava antes: debaixo da terra, isso se não foi pr’algum lixão.
Por toda parte ainda imperam os tapumes, as vigas, as portas improvisadas, os caminhões, os cones, as britadeiras, as faixas, os improvisos, o progresso. Até porque estamos em ano de eleição, alô alô, macacada!, prefeitura trabalhando. Progredimos! Mas mesmo quando abrir, não há nada de novo: vai ser a mesma coisa que aquelas partes já reformadas ao redor da Faria Lima – que, não por acaso, recentemente recebeu a autorização do prefeito Jassab para que se construíssem mais prédios –, da Martim Carrasco, da Cardeal Arcoverde, perto do Mercado de Pinheiros – esse ainda resiste – e da velha Cooperativa Agrícola, onde, silenciosamente, se produz um shopping na calada da noite. Dizem que não, mas é certo. Sem falar da quantidade enorme de prédios que surgem como cogumelos de aço, sem aviso prévio, na Fernão Dias, na Cardeal Arcoverde, na Faria Lima... me poupo, pois esse assunto me faz mal ao estômago.
A única alegria foi ver que o Cu do Padre, tradicional boteco da região, segue firme e forte atrás da igreja. Sem o velho surdo que trabalhava lá, diga-se de passagem. Mas fora isso é tudo cínico, até o doentio: não há mais luta possível, nem a revolta íntima, humilde, inútil mas justa, do ser que se indigna em silêncio, que cospe ou xinga por pura convicção, nem essa revolta tem mais qualquer beleza ou serventia, pois mesmo a alma se oblitera diante dos trinta e tantos andares espelhados, do engarrafamento de carros do ano, da estação de metrô, do Progresso, enfim. E não pretendo ficar de fora deste festim: viva o progresso! O Largo foi ganho. Meus parabéns! Quem ganhou, faça um favor, agradeça a quem perdeu. Eles bem que merecem. E de fora é como já disse algum estúpido: aos vencedores, o Largo da Batata!

2 comentários:

  1. Aplaudo com veemência e muita tristeza esta cronica. Incrível.

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  2. Parabéns pelo belíssimo texto, que tão bem expressa meus sentimentos por este lugar. Passeava pelo largo na adolescência, então um lugar gostoso e prazeiroso. O sítio arqueológico, nossa! Tinha até esquecido... Na época pensei "ah que legal vou ver isso logo num museu, ou vão deixar preservado lá". Santa ingenuidade, tive um momento de "estou em Paris", acho. Esqueci onde morava. Bicho que deprê.

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